Gélido, cheguei ao portão principal. O trabalho liberta, era o cartão de boas-vindas de um sítio que oscilava entre o ocre dos edifícios, o verde dos relvados circundantes e o preto dos arames farpados. Aquilo era Auschwitz. Ou melhor, era uma parte de Auschwitz e eu estava lá. Apenas com vinte e um anos e centenas de quilómetros percorridos de comboio por essa Europa de Leste. Confesso que o outro lado sempre me atraiu, seja pelos limitados conhecimentos que a escola dava (e dá), certamente por uma vontade maior de aprender com os sentidos. Olhar aquilo que um dia foi palco de criminalidade estatal feita por homens iguais a mim, ou cheirar o que mais de cinco décadas depois da sua libertação ainda parecia pairar no ar.
Ao final da manhã apanhava um autocarro para Birkenau. Auschwitz II era já ali, mas era preciso completar o quadro. A torre de madeira e a linha de caminho de ferro que entrava por um descampado dentro faziam relembrar célebres imagens do grande écran. Parecia que um comboio cheio de gente se preparava para ali entrar, rumo à morte, essa palavra que me parecia perseguir. Palavras que eu não tinha nem conseguia agarrar. Precisava de ajuda. Precisava de livros. Dessa alma entre as letras que completasse a construção sensorial do pormenor – que enorme e mágica palavra… Frases e imagens que me ajudassem a perceber que Sachsenhausen, onde estive três anos depois aquando da viagem, estava mais na definição de «campo de concentração», proposta por Laurence Rees, e menos na de «campo de extermínio». Auschwitz é o campo de extermínio. Foi o símbolo maior e mais conhecido – mas não o único – dos efeitos do totalitarismo na natureza humana e no despejo da sua dignidade mais elementar.
Birkenau é aterrador. Está igual a 1945. Nada foi alterado. Nada. Os blocos destruídos pelos bombardeamentos aliados, as latrinas em série, a lama que nos cola ao chão, amarrando-nos novamente à História. Montras repletas de cabelos e tapetes alinhavados com eles, montanhas de óculos, sapatos, malas ou escovas de dentes a transportarem-nos para outras páginas da vida onde - entre as palavras arrepiantes de Primo Levi (Se Isto é um Homem) e narrativas extraordinárias como a de Rees, perguntas incessantes de Hannah Arendt (The Origins of Totalitarianism) ou de Gideon Greif (We Wept Without Tears), até às excelentes abordagens de Tzvetan Todorov (Facing the Extreme e Memória do Mal, Tentação do Bem) - nos é permitido perceber o valor que um livro pode ter nas nossas vidas.
É no enlace com os nossos mais básicos sentidos mas, também, com aqueles que vamos descobrindo e desenvolvendo, que o livro se revela na sua mais nobre e emocionante condição. O que não será ler Primo Levi sentado em Birkenau? Qualquer coisa que nos transporta para o seu interior e mistura a nossa alma e corpo em cada uma daquelas pequenas grandes letras. Qualquer coisa a descobrir numa próxima viagem.
[Pequeno testemunho publicado na Atlântico Nº 11]