Podemos olhar para o caso entre turcos e israelitas ao largo da Faixa de Gaza de duas maneiras: vendo o episódio mediático, o facto que abre noticiários, o evento que pede um directo televisivo; ou tentando perceber por que é que os factos ocorreram de uma certa maneira e os Estados assumiram posturas anteriormente não testadas.
Os factos incluíam condimentos facilmente incendiáveis: navios a furar bloqueios, intervenção militar, armas a bordo, mortos e feridos, filmagens e relatos de activistas, choque e condenação nas opiniões públicas, declarações políticas ásperas e choques diplomáticos entre aliados. Bastaria tudo isto para desencadear um conflito rápido, com consequências gravíssimas para todo o Médio Oriente. Bastaria, mas não aconteceu. Importa tentar perceber porquê.
Primeiro, vale a pena ter em conta o timing da acção turca. Dependente dos humores de Paris e de Berlim para acelerar a adesão à União, Ancara optou por inverter este rumo por um instante: autonomiza a acção externa e dota-se de potencial político, militar, económico e cultural no Médio Oriente, acabando por provar ser mais importante para os europeus do que nunca. Por outras palavras, a Turquia dá um aparente passo atrás para poder dar dois à frente no processo de adesão e, com isso, diz às potências europeias que não passam disso mesmo: actores regionais com influência cada vez mais reduzida no plano extra-europeu.
Segundo, a Turquia optou por elevar o seu estatuto no Médio Oriente, confrontando um aliado, Israel. Faz sentido por três razões: deposita em si um sentimento comum na região, e ao imoralizar as acções de Telavive torna-se o agente moral na região; o AKP, no poder, conquista as ruas turcas no despique com os secularistas; assume que o comércio com os países da Liga Árabe representa trinta vezes mais do que o mantido com Israel e, por isso, a escolha, a existir, é óbvia. Daqui também resulta um aviso aos europeus: para vingarem economicamente no Médio Oriente terão de ter em conta a preponderância de Ancara.
Terceiro, o conflito não ocorre porque ainda há líderes que pensam a política externa com a lente realista. Para a Turquia, elevar a confrontação com Israel já lhe permitiu na região suficientes ganhos políticos que dispensam o recurso à força. Sabem perfeitamente que isso implicaria perder os EUA do seu campo de alianças e fritar em lume brando a paciência dos europeus que se dividiriam nos apoios. Para Israel, menos controlados e em gestão de esforço, permitiu ver com quem podem contar e sobretudo até onde podem hoje em dia ir. Acreditem que todos os envolvidos num caso entretanto sumido dos noticiários vão ter algumas destas variáveis em mente quando em breve voltarem a jogar cartadas fortes em defesa do sempre terrível interesse nacional. A velha política internacional está de regresso.
Hoje no DN